terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Sobre Lembrar



A primeira vez que ele me carregou nos braços eu não lembro, mas ele me disse que estava todo molhado e dizia: "é uma menina, eu disse que seria menina!". A primeira vez que ela me carregou no colo e fez aquela bênção poderosa que até hoje eu amo, eu não lembro, mas ela disse que fez igualzinho à como vovó fazia nela. 
A primeira boneca que peguei da minha irmã não lembro, mas ela disse que sempre preferi as dela, mesmo intuitivamente. Os banhos matinais dados por meu irmão no quintal da casinha de madeira, eu não lembro,mas meu irmão disse um dia desses que podia sentir na ponta dos dedos o cheirinho que eu tinha, ainda agora. 
O primeiro dia na escola, aquela garotinha loira que me acompanha, presente de cristo, eu não lembro. Mas ela diz que somos amigas desde o começo, antes da primeira série. Nunca brigamos. Mas eu não lembro a primeira vez que dormi na casa dela, nem quando a família dela virou uma espécie de pedaço da minha.
A primeira vez que li um livro,não lembro. Mas lembro que chorei muito e pedi muito a Deus para o pequeno príncipe existir, até meu pai me abraçar bem forte, levar para fora do quarto e tocar uma canção no violão. Ele disse que eu podia acreditar no que eu quisesse, que ele concordaria. Com isso, ele não sabe,talvez nem lembre, mas salvou minha alma de criança para sempre.
A primeira vez que a Julia sorriu para mim, eu me lembro. Mas ela não, e isso não faz nenhuma diferença. Porque foi lindo e justo que eu desse a ela, de imediato, tudo que eu tinha, e ela construísse com o tempo afeto.  E eu conto para ela, assim como me contam os meus, e vamos construindo quem somos com base no que vivemos e ouvimos, e principalmente, nas ações uns dos outros.
A primeira vez que caí e ralei os joelhos, não lembro. Mas uma vez caí da escada e o corte foi feio, isso me contam as cicatrizes no joelho. Me disseram que levou tempo indo ao médico curar, e que meu irmão cuidava muito,para não ficar cicatriz. Ficaram, tão fininhas, que quase não se vê, apesar de eu ser quase transparente.rs.
A primeira vez que eu o vi eu não lembro. O primeiro eu te amo saiu muito antes dos donos da história, imperioso e imprescindível.A primeira vida que vivemos? Não lembro.  A primeira vez não é certamente a coisa mais importante a ser recordada, muito embora, às vezes ( como lembrar da face da Júlia) nos encha de ternura.
Mas o que importa mesmo,mesmo, não é nem o que dizemos, nem o que tentamos recordar ou apagar, mas o inexorável marcado dentro de nós, inexplicável para quem não entende a magia da vida, essa coisa esquisita que nos dá aquela ternura própria, capaz de aquecer no frio e refrescar no calor, aquele feitiço poderoso... que nos torna humanos. 

E perenes.

" Os pequenos atos são melhores que todos aqueles grandes que se planejam" (G. Marshall)

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