quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Sobre palafitas e a maré de ser gente


Era um dia ensolarado, daqueles de doer nos olhos.

A beira do rio, à foz da fortaleza,  o Amazonas ardia e brilhava tanto, a ponto de encandear o olhar. Meu pai pescava com meus irmãos, embaixo de uma ponte, que unia as estradas entre Macapá e Santada, perto do Balneário, onde eu brincava com a filha do vizinho, sobre as palafitas que encobriam a superfície de barro, pois em tempo de maré baixa, abaixo das palafitas, morava apenas a argila, barro.

Por sobre as frestas da palafita, entre bonecas e panelinhas, meu olhar enxergou uma nota de um 'alto' valor - ao menos, para minha tenra infância. Era tempo de cruzado e minha mente hoje não sabe precisar, mas era como se fossem R$50,00 (Cinquenta reais).Empolgada, iniciei uma grande expedição de resgate do 'tesouro'.

Planejei milimetricamente, fui até o início da palafita e mergulhei naquele mar de lama. Peguei a tão sonhada nota e voltei, triunfante e suja até os cabelos.  Tomei banho e aguardei o pescador voltar com os frutos dos trabalhos do dia. Ele veio sorridente. Eu estava banhada e de cabelos trançados, balançando a nota, sorridente.

Aqueles olhos que chegaram brilhando fecharam o tempo. Perguntaram onde encontrei a nota. Respondi que foi embaixo das palafitas.  Ele disse: " E por que você pegou? não é seu. Devolva". Com a inocência de uma criança de sete anos, corri na direção da palafita e, entre as frestas, ensaiei jogar a nota de volta à lama.

Meu pai, interrompeu o ato e perguntou "Filha, mas foi assim que você pegou?". Inocentemente (e até bastante empolgada e orgulhosa), contei-lhe os detalhes da grande aventura.Meu pai, na sua sabedoria filosófica, falou: "Agora, tenha o mesmo trabalho para devolver, meu bem".

Entendi o que ele esperava, meio perplexa. Sob um sol que caía aterrorizante, vestida naquele vestido rosa clarinho, vergonhosamente mergulhei novamente por debaixo das palafitas, e vi a maré de perto, chegar e misturar à lama, à beleza do vestido, recém-perdida, ao estranho sentimento de que devia mesmo fazer aquilo. Assim, devolvi a nota, no mesmo exato lugar em que a peguei.

Ao voltar para casa, meu pai explicou o que eu precisava aprender, ao fazer aquilo: Que tudo que você subtrai de alguém, ainda que esta pessoa não saiba ou veja, faz com que você mergulhe na sujeira. E devolver é mergulhar nesta mesma lama, pedir desculpas e retornar, inteira. Tenho certeza que esta foi a  minha primeira lição sobre integridade.

...O tempo passa e aperfeiçoa a lição. Coloco essa memória deste dia de sol a serviço de quem sou, no instante. Tento ser a melhor profissional e pessoa que posso, para honrar a alegria de ter sido filha daquele cara incomum, nada convencional  e de longe, a pessoa mais HONESTA e uma das cinco pessoas mais INTELIGENTES que tive a honra de conhecer em toda a vida.

...O tempo passa e aperfeiçoa a lição. E, confesso, é difícil caminhar, em um mundo de pessoas que encontram e não devolvem a nota (seja ela monetária, seja um valor fora de mercado), ou que a devolvem pela fresta. Assim como é difícil mergulhar na lama de seus próprios erros, desfazer ou refazer pegadas, e assim fazer o que é certo. Confesso que tento. 

Não pelo mundo. Mas por mim e pela pessoa que fui ensinada a  ser...dentre universos tão complexos, fui muito abençoada, regada com as águas do amor e encaminhada para vir para o mundo bagunçar um pouco menos as coisas, me divertir, amar e aprender. Sei que,humana que sou, tenho algumas -poucas - notas comigo (todo mundo as tem).  Mas também, valores  tão fortes  quanto aquele olhar de prata derretida, que dizia o que o certo nunca deixa de ser o certo, não importa quantas vezes você faça algo diferente.

Naquele dia, aprendi outra lição, que só entendi bem depois de 'gitinha': A vida, queridos, pode escrever certo por palafitas tortas. Ou escrever torto por palafitas bem certinhas. A mim, não cabe ainda entender. Só tentar caminhar por aqui, com minha (im)própria bagagem, em busca de amar, aprender e fazer o bem.

É certo que não tenho curso de vida,  em quase tudo sou "amadora"...mas que palavra linda! Se, por um lado quer dizer "não especializada", por outro, significa: namorada, curiosa, apreciadora. Por isso, como boa namorada da vida, torço para que o tempo  surpreenda positivamente e encaminhe nossas mentes e corações pelas palafitas da vida ...para a felicidade.


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Obs*Desculpem eventuais erros de português. Nasceu só de uma vez, após um processo de 1900 páginas e não tive tempo de reler, antes de ir para a lida.

LUZ!

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