Ouço delicadas palmas do lado de
fora e, da janela, encontro Lúcia, sorridente, em uma enorme bicicleta, tão
maior que seu corpinho magro.
- Oi, cadê a Zoé? (Lúcia ama
cachorros e, por acaso do destino, um dia bateu-me à porta e virou
imediatamente amiga de Zoé, minha filhota de quatro patas). Brinca com Zoé e,
minutos depois, senta-se comigo à mesa para tomamos café.
Isso se tornou frequente em
nossas vidas. Nesses momentos, ouço Lúcia falar de si e seu cotidiano e,
através dela, sei o que é ter onze anos e viver em volta de uma comunidade que,
mesmo que ao meu lado, tem um tempo e espaço (urbano, inclusive) diferenciado.
Vou apresentar Lúcia para vocês. Lúcia
é uma criança de 11 anos, morena, cabelos e olhos negros e enorme sorriso. É
baixinha e magrinha para sua idade. Mora no bairro das pedrinhas, dentro de uma
área de ressaca e estuda na escola pública aqui ao lado.
Lúcia não sabe ler - apesar de hoje ser o dia do livro infantil e
só faltar a ela poucos anos para sair desta fase mágica - Mas adora quando abro
meus livros de ‘adulto’ e enfeito as páginas com palavras, contando a ela de
outras realidades, tão mais mágicas.
Seu pai, trabalhador de uma das
madeireiras, tradicionalmente alocadas no canal das pedrinhas, sofreu um
acidente ano passado e perdeu a mobilidade. Não consegue andar, senão com o uso
de muletas. A mãe, até então uma senhora do lar, ocupada com seis filhos, não
soube o que fazer, passou a trabalhar como diarista.
Apesar disso, Lúcia diz que seus
pais se tratam bem e que ela os ama. Conversa vai, conversa vem, certa vez, Lúcia
confidenciou, quase envergonhada, que sonha ser uma DELEGADA, que em suas
palavras, é pessoa importante, que realiza AUDIÊNCIAS.
Sempre que vem aqui, lemos um
livro. Hoje, li para ela “ Cinderela”, porque é bonito ver seus olhos
iluminados por mundos mágicos. Mas também já contei a ela umas histórias de
mulheres fortes, como Frida Kahlo, a artista maravilhosa que fez de sua dor uma
incrível obra de arte; de Mulan, a jovem guerreira que revolucionou a China e
mesmo de Malala, a menina que queria estudar.
Quando Lúcia toca nos livros, sua
reação quase envergonhada aperta-me a garganta. E sinto-me tão culpada por
fazer parte deste sistema, por não conseguir mudar, em um passe de magia ( no reverso dos livros infantis, não sou tão
boa fada madrinha)sua realidade…sei que parte de sua vergonha é minha também. Mas
eu conto a ela só o lúdico que tem dentro dessas páginas e espero que ela
encontre nas histórias e estórias que ‘lemos’ um alento ou incentivo.
Depois, ela vai embora, sempre sorridente,
apesar dos medos. É que ela relata que, há meses, as crianças do entorno têm medo de andar na rua,
pois alguns veículos param na esquina de sua casa e de sua escola, oferecendo
balas e dinheiro para que as meninas entrem nestes. Até mesmo me relatou
que já saiu correndo, dia desses, para dentro da escola, pois este veículo
parou ao seu lado.
Sei que pode ser apenas o
imaginário ativo de uma menina de onze anos, mas não duvido de que seja verdade,
pois, já disse o poeta, ‘o mundo anda tão complicado’.
Lúcia não sabe ler, mas já sabe
fugir de veículos que oferecem doces e trocados às meninas de sua idade. E, como
desconhece os meios de frear essa violência, que para ela é seu ‘bicho papão’
da vida real, ela sonha:
Lúcia vai ser DELEGADA.
Escrevi este texto em 18 de Abril de 2017.
Lúcia pouco a pouco aprende a ler, e eu...bom, sigo pingando gotinhas de água por esse mundo onde a vida 'arde' e feliz por, ainda que tão pouquinho perto de tudo que gostaria, contribuir com seu Universo e vida.
LUZ!
<3
Lúcia pouco a pouco aprende a ler, e eu...bom, sigo pingando gotinhas de água por esse mundo onde a vida 'arde' e feliz por, ainda que tão pouquinho perto de tudo que gostaria, contribuir com seu Universo e vida.
LUZ!
<3
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