O carro da esquina buzina, o relógio ecoa um monótono tique-taque. Da
janela embaçada do café, vejo cair um morno fim de tarde. Hoje, 21.11.2017,
mulher ao espelho: Caucasiana, 1.59, cabelos avermelhados. Na bolsa, C.I e
outros dados. A este conjunto de
pequenas afirmações materiais, entre slogans e dados, chamam de identidade.

A primeira vez que refleti sobre a frase, imaginei o triste óbvio da
informação. De fato, Mona Lisa não parecia tão feliz. Sob a luz diáfana, seus
olhos não riem. Mas, com o passar dos anos, percebi que… talvez ria sim. Quem
sabe cabe a cada um de nós o riso ou a tristeza que atribuímos à moça. Monalisa
mesmo, a pessoa que emprestou sua estética para o pintor, terá sempre o
mistério e a bênção de ser própria.
Quanto a mim, é bem verdade que
não sei exatamente quem sou, pois ser
Pessoa, bem
sabia Fernando, é ser muitos em um. Sei que em mim mora a menina que costumava sentar no colo dos pais e brincar na
rua de terra batida com os primos. Há a adolescente que lia e devorava de folhetins adolescentes, do tipo Sabrina a Kafka, Dostoiévski e Rubem Alves, entre tantos outros, que fizeram
comigo a travessia para a fase adulta.
Que aprecia abraços, recebe com alegria tudo que é diferente, apesar
dos dias, que caem iguais, e destas ‘pessoas cinzas, normais’, que passam, assinam o
ponto, vendem a alma com desconto e fingem ser gente… enquanto isso, a tarde vai.
E o que eu era de manhã já não sou mais, nada acompanha a estética do
momento, que é mais sutil e voraz que toda a ótica do tempo. Simbolicamente, em
mim, carrego esta multidão. Deve ser por isso a referência bíblica a demônios:
temos todos os nossos, o fogo de ‘se ser’.
E talvez por isso a modernidade, nosso acelerado, a quebra das
convicções mais singelas, as distopias, tantas produções cinematográficas de
super-heróis: para salvar e sermos salvos. Mas, de repente, algo delicioso aparece
no roteiro alucinado desta epifania e,
na simplicidade minha multidão silencia e cai em ‘nós’… um café e a
breve satisfação, sensação cheirosa e quente de ser inundada, preenchida. Sei
que o apelo parece quase sexual. Aliás, já li algo a respeito em
Rubem Alves sobre esta interligação de prazeres, que ‘ ao outro lado’,
chamamos ‘comer’.
Sei que não é fácil rimar tantos anos e danos, entre vidas e corações entrecortados – todo mundo é um furacão. Mas, num breve instante, é possível sorver
um pedaço da incrível 'dor e delícia' de me ser, engolir o calor do mundo e
sentir tudo que mora em mim… repousar.
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