terça-feira, 21 de novembro de 2017

Divagações de fim de tarde e um café. ( Filosofia do Boteco da Lua)



O carro da esquina buzina, o  relógio ecoa um monótono tique-taque. Da janela embaçada do café, vejo cair um morno fim de tarde. Hoje, 21.11.2017, mulher ao espelho: Caucasiana, 1.59, cabelos avermelhados. Na bolsa, C.I e outros dados.  A este conjunto de pequenas afirmações materiais, entre slogans e dados, chamam de identidade.

Confesso, isso sempre me inquietou. Recordei agora, meio que por instinto, do filme “O sorriso de Mona Lisa’’, que tinha como personagem principal uma professora, interpretada por Julia Roberts.  A primeira coisa que chamou-me ao filme, foi o título: o tão estudado, metrificado e explicado, ainda assim misterioso, riso de Mona Lisa. Em um dado momento, após uma divagação, a personagem diz: ‘ olhe para ela. Ela parece feliz? Ela não está feliz’.

A primeira vez que refleti sobre a frase, imaginei o triste óbvio da informação. De fato, Mona Lisa não parecia tão feliz. Sob a luz diáfana, seus olhos não riem. Mas, com o passar dos anos, percebi que… talvez ria sim. Quem sabe cabe a cada um de nós o riso ou a tristeza que atribuímos à moça. Monalisa mesmo, a pessoa que emprestou sua estética para o pintor, terá sempre o mistério e a bênção de ser própria.

Quanto a mim,  é bem verdade que não sei exatamente  quem sou, pois ser Pessoa, bem

sabia Fernando, é ser muitos em um. Sei que em mim  mora a menina que  costumava sentar no colo dos pais e brincar na rua de terra batida com os primos. Há a adolescente que lia e devorava de folhetins adolescentes, do tipo Sabrina a  Kafka, Dostoiévski e Rubem Alves, entre tantos outros, que fizeram comigo a travessia para a fase adulta.


Que aprecia abraços, recebe com alegria tudo que é diferente, apesar dos dias, que caem iguais, e  destas ‘pessoas  cinzas, normais’, que passam, assinam o ponto, vendem a alma com desconto e fingem ser gente… enquanto isso, a tarde vai.

E o que eu era de manhã já não sou mais, nada acompanha a estética do momento, que é mais sutil e voraz que toda a ótica do tempo. Simbolicamente, em mim, carrego esta multidão. Deve ser por isso a referência bíblica a demônios: temos todos os nossos, o fogo de ‘se ser’.

E talvez por isso a modernidade, nosso acelerado, a quebra das convicções mais singelas, as distopias, tantas produções cinematográficas de super-heróis: para salvar e sermos salvos. Mas, de repente, algo delicioso aparece no roteiro alucinado desta epifania e,  na simplicidade minha multidão silencia e cai em ‘nós’… um café e a breve satisfação, sensação cheirosa e quente de ser inundada, preenchida. Sei que o apelo parece quase sexual. Aliás, já li algo a respeito em Rubem Alves sobre esta interligação de prazeres, que ‘ ao outro lado’, chamamos ‘comer’.


Sei que não é fácil rimar tantos anos e danos, entre vidas e corações entrecortados – todo mundo é um furacão. Mas, num breve instante, é possível sorver um pedaço da incrível 'dor e delícia' de me ser, engolir o calor do mundo e sentir tudo que mora em mim… repousar.

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